Aclamado como obra-prima pela crítica, o filme Cidade de Deus não denuncia o “sistema”. Ele apenas transforma a favela em espetáculo; e o pobre, em ameaça.
Não há estruturas. Há personagens “perigosos”, “bandidos”, “bons de coração”. A favela vira um teatro de moralidades. E o pobre vira sempre um tipo.
Cidade de Deus não ouve o pobre. Fala em nome dele. E o apresenta à classe média urbana e universitária com uma lente suja de medo e glamour.
Jessé Souza, em O Pobre de Direita, também tenta explicar o comportamento dos pobres — mais especificamente, o comportamento político dos pobres que não são de esquerda. Mas erra feio ao ignorar a cultura que constrói a imagem do pobre como inimigo moral.
Tanto Cidade de Deus quanto O Pobre de Direita falham pelo mesmo motivo: não enxergam o pobre como sujeito. Enxergam como problema.
Não basta falar sobre pobreza. É preciso reconhecer o pobre como sujeito com direito a subjetividades, complexidades e contradições.
Só falsificou dinheiro, assaltou banco e matou um homem.
No filme O Homem que Copiava, André Maciel é um rapaz de 19 anos que mora com a mãe e trabalha numa papelaria. Quer ser ilustrador, mas ninguém o publica. Apaixona-se pela vizinha. E resolve começar a falsificar dinheiro.
Não é por fome.
É pra comprar um chambre.
Depois, pra conquistar o coração de uma moça.
Depois, pra assaltar um banco.
Depois, pra matar.
Mas o intelectual de classe média não vê problema. Porque André é “criativo”, “tímido”, “estrategista”. Porque tem cara de quem lê Kafka — e não de criminoso.
O filme não romantiza a pobreza. Romantiza o trambique ilustrado. A pequena delinquência “com motivos bons”.
A corrupção intelectualizada da classe média perdoa o delinquente, mas fica aterrorizada com o pobre de direita.
O Homem que Copiava é o espelho da moral urbana brasileira: bonita por fora, podre por dentro. Mas com trilha sonora charmosa.
The Life Snake (ou: a vida cobra)
Não é o capitalismo o vilão de Parasita — é a falta de freio moral de quem quer vencer a qualquer custo.
A sujeira que contamina os pobres no filme não sai com banho. Parece sair com dinheiro. Mas sai com tragédia.
O filme nos lembra que a pobreza não é só falta de renda.
É um lugar simbólico de humilhação, onde o riso é medido, o cheiro é notado, e o fracasso parece hereditário.
A família rica, por sua vez, não é cruel, é gentil. Sua “educação”, por vezes, é só uma forma elegante de manter distância.
No fim, Parasita nos mostra muito mais do que um conflito de lugar.
Não se trata apenas de quem serve e quem é servido, ou quem vive no porão e quem tem quintal.
Mostra, também, um conflito de valores.
Esse jogo — que parece puramente econômico, mas é profundamente moral — passa ao largo da análise do sociólogo Jessé Souza no livro O Pobre de Direita.
Se Jessé Souza tivesse assistido Parasita com atenção, talvez não tivesse escrito O Pobre de Direita.
Os memes parecem só piadas, mas são pequenos espelhos de um discurso maior. E nesses aqui, o reflexo é claro: a esquerda “esclarecida” ainda acha que pobre que vota na direita é burro, gado, traidor ou um ser alienado comediante de si mesmo.
E assim, entre um Pluto e um Pateta, se constrói uma arrogância política que não apenas fracassa em dialogar; ela agride, humilha, inferioriza, desumaniza. E depois se pergunta por que perdeu o eleitorado popular.
Mas o que esses memes revelam não é só ranço. É a dificuldade da elite progressista em aceitar que nem todo voto é “consciente” no sentido acadêmico. Mas muitos são profundamente morais, emocionais, vivenciais. A vida não acontece nos livros; ela pulsa nas faltas e nos afetos, inclusive os religiosos.
E mais: pobre também tem direito à liberdade de pensamento. Por que isso é tratado com estranheza pelos intelectuais?
A esquerda esqueceu de ouvir. E no lugar de ouvir, fez piada.As pessoas não mudam de opinião porque viraram piada. E não se sentem compreendidas por quem só fala difícil e ri delas depois.
É esquizofrênico chamar maior parte da população brasileira de “barata que vota no chinelo” por votar na direita e, ao mesmo tempo, esperar que essas mesmas pessoas permaneçam filiadas ao seu lado político.
Jessé Souza já chamou o povo pobre de tudo; menos de povo.
Era “batalhador brasileiro” lá em 2009, “ralé” em 2011, “pobre remediado” depois, e agora veio com o pacote completo: pobre de direita, também conhecido como bastardo, ressentido, cúmplice moral do bolsonarismo e, talvez, até figurante não creditado no filme do Coringa.
O pobre é descrito com tanto zelo caricatural que parece saído de um episódio do Zorra Total e recebe inglórios codinomes:
• bastardo (igual aquele da Roda dos Expostos);
• ressentido;
• pobre remediado;
• e, claro, a cereja do bolo: lixo branco do sul (sim, essa expressão está no livro!).
Lixo branco do Sul.
Não, não é o nome de uma banda punk de Porto Alegre.
É um dos termos usados por Jessé Souza em O Pobre de Direita para se referir a uma parcela da população pobre, mais especificamente, branca, do Sul e de São Paulo. Na mesma frase, ele também menciona o “negro evangélico”. O pacote completo está entregue: um sociológico “você não presta” embalado com laço teórico.
Lixo branco do Sul é quando o preconceito academicês escorrega e cai de cara na arrogância de quem acha que pode escrever uma tese e uma ofensa no mesmo parágrafo; e ainda desejar ser aclamado por isso. É tipo a versão sociológica do “não sou preconceituoso, mas…”. Você olha esse termo e pensa: será que o Word não sugeriu um alerta de “talvez isso seja péssimo”?
E aí, a gente se pergunta: quando exatamente virou moda chamar o povo de lixo e publicar isso com ISBN?
Tem algo de profundamente contraditório em denunciar o preconceito com uma frase que cheira a ranço de classe. Se fosse só rótulo, já bastava. Mas aqui o rótulo vira diagnóstico e culpa. Uma espécie de sociologia-punitiva com tese de doutorado.
Enquanto isso, o povo segue votando, trabalhando, existindo. E Jessé segue rebatizando, como quem acha que dá pra resolver o Brasil com sinônimos que ofendem e não explicam.
Na conclusão de O Pobre de Direita, Jessé Souza solta o sabre conceitual e chama Jair Bolsonaro de o vingador dos bastardos.
Sim. É isso mesmo. O ex-presidente no papel do justiceiro mítico dos humilhados e ofendidos. Não porque protegeu, mas porque canalizou ressentimento. Não porque libertou, mas porque prometeu revanche.
A analogia é tão dramática que parece saída de uma fanfic com ranço acadêmico: o bastardo vingador, o povo traído, a elite cega, o moralismo como espada. Com esse tipo de construção narrativa, o livro às vezes se afasta da análise sociológica e escorrega para um romance político onde vilões e heróis se revezam em monólogos inflamados. Só faltou um dragão neoliberal sobrevoando a Faria Lima.
E é claro que, ao ler “Vingador”, só conseguimos imaginar essa figura aí: o vilão da Caverna do Dragão. Caprichosamente montado no cavalo negro da mágoa, armado com o cetro do moralismo, pronto para punir o mundo em nome da sua dor.
Mas, para Jessé, isso não é uma piada. É um diagnóstico. O Vingador se apresenta como a única figura disposta a reconhecer a existência dos “bastardos” — os filhos da roda dos expostos do Brasil contemporâneo.
Mas, afinal, como explicar a adesão do pobre à nova direita?
A expressão “pobre de direita” virou o novo xingamento gourmetizado da elite progressista. Um termo que parece análise, mas é só desprezo disfarçado de crítica social.
Quando Jessé Souza lança um livro com esse título, ele sabe o que está fazendo: oferece ao leitor de classe média ilustrada exatamente o que ele quer — alguém para culpar. E, claro, um inimigo que não o confronte. Porque é mais fácil apontar o dedo pro “pobre que vota errado” do que encarar que o abandono político e afetivo da esquerda começou muito antes das urnas.
O livro se vendeu como pão quente. Não porque é uma análise profunda — mas porque diz, com palavras acadêmicas, aquilo que muitos gostariam de gritar sem culpa: “pobre burro vota mal porque é manipulado.” Jessé oferece alívio de consciência para quem nunca pisou num culto pentecostal ou num grupo de WhatsApp de bairro.
E a ironia? A elite progressista, que adora discursar sobre empatia, se sente moralmente superior justamente por achar que só ela entende o que é moral. Enquanto isso, as igrejas evangélicas ocupam o espaço que a esquerda intelectualizada abandonou por considerá-lo “atrasado”.
Chamar o outro de “pobre de direita” é um atestado de distância. É uma forma de dizer: “esse pobre não é o meu pobre, não é o que eu idealizei, não é o que me escuta quando eu falo de Foucault.” E aí a pergunta não é mais “por que o pobre vota na direita?”, mas “por que a esquerda progressista não sabe mais falar com ele?”.
Comparar Brasil Insurgente com O Pobre de Direita é como trocar o ar-condicionado da academia pelo bafo quente da feira de rua.
Mércio Gomes escreve com o pé no barro. Jessé Souza, com o nariz empinado.
Enquanto um vê o povo como sujeito da história, o outro chama de bastardo e encerra com “vingança”.
Um enxerga levante, o outro diagnostica ressentimento.
Um ouve o grito da rua, o outro traduz do francês acadêmico.
Mércio, antropólogo, fala do povo com a intimidade de quem já dividiu o mesmo banco de ônibus, a mesma marmita, o mesmo espanto com esse país que insiste em sobreviver a tudo.
Jessé, sociólogo de jaleco ideológico, observa o “pobre de direita” como quem pede um cappuccino sem espuma: com incômodo leve e moral de laboratório.
Um chama o povo de protagonista.
O outro, de bastardo.
Mércio propõe insurgência.
Jessé oferece um diagnóstico com bronca, régua e gráfico mental.
E aí? Você quer entender o Brasil que levanta cedo, ou seguir lendo o Brasil que só acorda pra cancelar?
Um meme de mau gosto vestiu um jaleco sociológico e se chamou de análise.
O resultado? Um livro de literatura ficcional esquisita, que serve, hoje, como Escritura Profana para militantes do PT.
Na aula 2 do Clube da Sexta-Feira, olhamos de frente pra esse fenômeno editorial que virou mantra nos circuitos intelectuais.
Sem medo de rir, discordar ou pensar. Às vezes tudo ao mesmo tempo.
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É tão difícil assim pra "esquerda empoada" entender que quando se fala em "infra estrutura, segurança pública e redução de impostos e burocracia" você atinge o pobre e quando fala em "absorventes pra travesti" não?
Relendo seu texto, e ouvindo estas expressões deste intelectual, minha vontade sincera é de mandar ele ir para casa do caralho. Sem formalismos. Obrigada pelo seu texto!